19 de julho de 2011

Acumula-se tudo na alma...

Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?

As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar. Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre.

Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar.

A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se.

Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar.
É preciso aceitar esta mágoa, esta moinha que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução.

Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si, isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução.
Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha.

Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.

O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos, amigos, livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.
- Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'



Nota: como já devem ter percebido, adorei este texto.

18 comentários:

  1. O texto é muito bonito, mas e contigo está tudo bem ou queres-te esquecer de alguma coisa? Beijinhos Enfermeira Corina

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  2. Olá!

    Já tinha lido uma parte deste texto noutro blog e adorei mas agora ao lê-lo por completo adorei ainda mais. Está tudo dito. Não há mais nada a acrescentar.:)

    Boa semana!
    Beijinhos da Formiguinha

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  3. Ora nem mais... e o segredo é msm esse, não esquecer... por mais que isso custe, por mais que doa a separação ou o desaparecimento, a lembrança é o maior remédio para apaziguar a ausência.
    Adorei
    Bjs*

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  4. adorei!! faço as mesmas perguntas iniciais!

    obrigada querida **

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  5. Lindo lindo lindo!

    Há sempre histórias destas na vida de toda a gente :)

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  6. Está fantástico. Muito forte e sentido*

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  7. quem me dera ter a força para tomar o indomável chamado coração!!!!!!

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  8. quem me dera ter a força para tomar o indomável chamado coração!!!!!!

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  9. Um texto fantástico. Li-o há uns tempos e pensei cá com os meus botões que o Sr. Miguel Esteves Cardoso disse mesmo o que precisamos de ler e ouvir em certos momentos da nossa vida. :)

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  10. Senti cada palavra que li,tudo tão verdadeiro, tão real.
    Perdi o meu há cinco meses, é uma dor muito grande, principalmente a saudade que sinto dele. Mas tenho as recordações, as memórias e essas estarão sempre comigo. Sou um pedaço do meu pai, ele, junto com a minha mãe, deu-me a vida, logo estará sempre comigo, pois sou parte dele e ele parte de mim. A morte não é o fim.

    Beijinhos.

    luisa-coisas-que-tal@gmail.com

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Faz deste reino, o teu reino... Não te acanhes, está à vontade! Cá estarei para te ler.