18 de abril de 2019

A mãe enfermeira, parte 1


Como já disse imensas vezes, este Reino não é nada sem os seus súbditos e este post vai ser escrito devido a um comentário da Joana, uma súbdita assídua aqui do Reino. 

"Bem... estas respostas originaram mais perguntas na minha cabeça. Especialmente ligadas ao teu trabalho. (...)  tens pano para mangas, se quiseres pegar nesse assunto :) Acho que seria muito interessante. A minha mãe trabalha com muitos enfermeiros e sei que muitos estão a sair do país, tal como tu, à procura de mais e melhores oportunidades. Falar sobre como conseguiste essa oportunidade e o que batalhaste até lá chegar, poderia ser importante para algumas pessoas que estejam no impasse, cá em Portugal. Não que eu queira ver Portugal sem enfermeiros lol longe disso... Mas acho que às vezes as pessoas se agarram a situações menos felizes do que as que poderiam ter tido, por falta de conhecimento e de um empurrãozinho."

Nota: cortei só as perguntas dela do comentário que é para responder uma a uma e o post fazer mais sentido.
Ora bem, antes de responder às imensas perguntas que ela fez, queria apenas mencionar que, ainda hoje, tenho dificuldade em manter uma co-habitação harmoniosa entre o meu Eu-mãe e o meu Eu-enfermeira. Quando eu conseguir, eu depois digo coisas, LoL.
Como tinha dito, eu reparti o comentário dela para poder ir respondendo mas copiei-o de forma integral.
 "Questões como de que forma encaras a doença e o que te motivou a ser enfermeira;"
Pois bem, não sei muito bem responder a esta questão mas digo-vos que eu inicialmente não queria ser enfermeira. Eu queria e entrei na universidade para o âmbito da Genética. Ainda hoje adoro ler sobre o maravilhoso mundo da genética e na altura adorava as aulas teóricas. O problema foi quando comecei a ter aulas práticas no laboratório e eu achava a maior seca deste mundo! Portanto, quando isso aconteceu, levantou a grande questão: "e agora?"
Enquanto tentava decidir o que fazer, aconselharam-me ir para Enfermagem pois tinha todo o perfil para ser enfermeira. Gente, eu quero que vocês tenham a plena consciência de que eu fugia de Enfermagem como o diabo foge da cruz! Eu achava que não iria ter estômago e social skills para cuidar de pessoas doentes. Mas os meus pais puseram-me à vontade e disseram para dar uma hipótese ao curso de Enfermagem e depois logo se via...
O que se viu é que a transição em termos teóricos foi super suave pois era na mesma tudo à volta de biologia, bioquímica, biofísica, com a adesão do cadeirão de anatomia e psicologia, coisas que adoro. Estava era com receio do primeiro estágio, não fosse acontecer o mesmo que Genética. Quando eu tirei o meu curso, havia logo um estágio curricular, de mês ou mês e meio, no primeiro ano.
E o que aconteceu? A-d-o-r-e-i!
Depois desse primeiro estágio, já não me via a fazer outra coisa.
"Como lidas com a morte de um doente ou se ser enfermeira mudou a tua forma de ver a vida;"
Já antes de ser mãe tinha um bocado esta visão mas depois de ter o Príncipe, naturalmente, intensificou-se. A morte de um paciente não é uma coisa que eu tome levemente mas, e tenho que frizar isto, com adultos se alguém está a morrer tentamos obviamente fazer o máximo porém se por acaso acabam por falecer, não mexe comigo nem me perturba tanto como quando uma criança está em perigo de vida. Ou por exemplo, numa cesariana um bebé ter que ser ressuscitado.
Chamem-me insensível ou o que quiserem mas com crianças mexe mesmo comigo. Contudo, definitivamente a forma de ver a vida mudou bastante a partir de que me tornei enfermeira. E vou correr o risco de ter uma opinião não muito popular e/ou chocar-vos mas é a realidade...
Vejo cada vez mais que não há dignidade em morrer.
Vou-vos contar outro exemplo, que ainda hoje me marcou... Quando fazia turnos da noite, se por acaso o Bloco estivesse sossegado, era muito comum eu colar-me à equipa de ressuscitação (é constituída por anestesia e eu adorava colar-me a eles pois além de ajudar na parte de CPR, ganhava experiência no que tocava naquele tipo de emergências... maluquice minha, muitas vezes me disseram, LoL) e para explicar mais ou menos o que eles fazem, eles carregam um "pager" ou "bleep" e são chamados quando um doente no hospital precisa de suporte básico ou avançado de vida. Portanto, numa dessas chamadas, fomos ter com um doente que entrou em falência e antes de começar a ajudar com CPR, ouvi com atenção o historial do paciente: problemas cardíacos que ocupavam duas páginas, já tinha sido amputada uma perna devido a problemas vasculares, estava cego, tinha sido diagnosticado com cancro e já tinha levado com uns quantos ciclos de quimioterapia, tinha um "prognóstico terminal" e o doente tinha recusado a medicação toda do dia anterior e estavam em processos de o avaliar psicologicamente pois por ele ter recusado os medicamentos tava senil na certa... Nesse momento saio do quarto e fico a ver o seguinte cenário: um velhinho decidiu que não queria continuar a perder mais qualidade na sua vida. Queria morrer com dignidade, se "voltasse" ia regressar um vegetal e eu não queria participar nisso.
Mas nem tudo é mau, fazemos também muita coisa boa. Cirurgias que são um verdadeiro sucesso no que toca à qualidade de vida de um ser humano ou mais não seja aquelas cesarianas completamente normais, dando imensa felicidade que transborda naqueles pais ou cirurgias que são um sucesso e salvam pessoas.


Nota: as minhas respostas ficaram tão compridas que tive que dividir este post em dois... por isso aguardem pela parte 2!

4 comentários:

Matilde disse...

Tenho profunda admiracao pela tua profissao! E fico fascinada pela forma como voces encaram todas as situacoes com humanidade. Eu estou extremamente grata aos teus colegas que teem cuidado de mim. Bem hajam!

Larissa Santos disse...

Uma profissão que muito aprecio. Adorei ler:))

Hoje, com a participação de ambos:- Páscoa :- JESUS é Amor, Luz, Felicidade (Poetizando e Encantando)

Bjos
Votos de uma óptima noite, e uma Santa Páscoa.

Joana Nunes disse...

Antes de mais, muito obrigada por este post e pela resposta às perguntas. Fico muito contente que aquele comentário tenha dado azo a não 1 mas 2 posts! lol :D
Acho fantástico quando descobrimos a nossa verdadeira "vocação" por acaso. Eu também descobri o que realmente gostava no meu primeiro estágio em arqueologia. Mas, ao contrário de ti, e muito por falta de cursos na altura, mantive-me na arqueologia e depois fiz a PG em antropologia biológica e forense. Infelizmente, não exerço nem uma coisa, nem outra lol Mas hoje em dia existem imensos cursos superiores em criminologia e ciências forenses. Claramente nasci no ano errado lol
Não acho que a tua opinião em relação às vidas seja pouco popular... cada vez mais sinto que a opinião mais comum é semelhante à tua - a vida de uma criança é mais importante (também compreendo que mexa mais porque tens uma criança na tua vida). Se calhar eu é que sou insensível, mas para mim uma vida é uma vida. Nenhuma é mais importante que outra, independentemente de ainda ter a vida toda pela frente ou já ter vivido "tudo o que tinha para viver". Algumas pessoas têm sempre mais qualquer coisa para viver, dar e receber. Claro que depois há exemplos como o que deste e, por esse motivo, sou completamente a favor da eutanásia desde muito cedo. Para mim não faz qualquer sentido uma pessoa que esteja a sofrer e queira deixar de sofrer ser mantida viva só pelo bem/não sofrimento dos outros.

Ansiosa para ver o resto :D
Obrigada!

Um beijinho,
Joana

panemicbooks.blogspot.com

Green disse...

Acredito que não deva ser uma profissão fácil, aliás, era algo que eu não me via a fazer, e acho que por vezes tens de desligar mesmo um pouco, pois não deve ser nada fácil assistir a algumas coisas que se passam nos hospitais.